“Como um rio de alma comum, do brâmane ao flâmine romano, do hierofante ao druida, uma espécie de Deus fluido corre nas veias do gênero Humano”
Victor Hugo
O corpo não é apenas a nossa aparência, mas uma expressão material do Ser. O sagrado e o profano se expressam no corpo, como divino paradoxo.Somos um espírito que se tornou matéria, e temos um corpo que serve de veículo para interação com o meio externo, através dos órgãos dos diversos sistemas que compõem nosso organismo. Nosso corpo sofre influencias exteriores, as processa como informações e as interpreta constantemente. Isso acontece sem que nos apercebamos dos constantes processamentos químicos e neuronais que resultam em bem ou mal estar, saúde ou doença. Porém, é possível desenvolver a consciência do corpo e a percepção das suas funções e movimentos interiores. Para a filosofia e medicina orientais existe desde tempos longínquos a compreensão de que espírito, psique e soma (corpo) estão entretecidos numa só malha interdependente. A consciência, ao assumir forma humana, adquire invólucros que são igualmente importantes para atuar, e compartilhar em diferentes níveis e maneiras com todas as formas de vida. Esses invólucros os hindus chamam “koshas”. Panchakoshas, cinco invólucros ou envoltórios: físico, vital, mental, intelectual e psiquico-espiritual. Atualmente, a medicina ocidental se aproxima cada vez mais dessa compreensão integrada do ser humano. As concepções culturais direcionam o uso e a importância subjetiva, e objetiva do nosso corpo físico. As culturas ágrafas dos povos tribais têm na natureza seu livro de sabedoria, e são mais íntimos da Terra, por isso têm uma fluidez maior de movimentos corporais e um refinamento sensório-motor. Para esses povos a percepção dos recursos do corpo é muito importante. É fundamental para que sejam capazes de desempenhar suas tarefas básicas com boa qualidade, flexibilidade e alegria. Para tal entram em sintonia com o ritmo da natureza, e sobrevivem pela habilidade do corpo para se adaptar as intempéries, e caçar, pescar, subir em árvores, nadar, correr e dançar para louvar o sagrado. No Egito antigo os sacerdotes médicos acreditavam que os princípios que regiam o corpo eram os mesmos que regem o universo. O ser humano era visto como um protótipo do universo, e o corpo como o microcosmo. Portanto, nele todas as ciências residiam. O corpo era o Templo do Ser e do Saber, e cada órgão era identificado com determinado “neter”, um aspecto de Deus. Cada “neter”, ou aspecto de Deus, tinha regência sobre os órgãos dos diferentes sistemas que compõem o organismo. Quanto mais saudável o corpo permanecia, tanto mais estava harmonizado com os deuses, a vida e o universo. Os gregos compreendiam o corpo como fonte de prazer e beleza, e esteticamente o físico deveria evidenciar a unificação do soma e da psique, ou seja, do corpo e da alma. No ideal grego-helênico, o corpo pode e deve expressar valores filosóficos do bem e do belo. Mentes e corpos saudáveis era a meta a ser cumprida. Para os budistas e hindus o corpo, é o Templo de Deus e da Transmutação, é o vaso alquímico onde todas as forças do universo estão reunidas, e devem ser canalizadas e transformadas de modo a criar uma ordem de integridade elevando assim a energia das tendências naturais, e a radiância do espírito. Para os chineses a saúde é equilíbrio de energias e a sintonia fina entre o micro e o macro cosmo, o homem e o universo. Desde crianças, no ocidente, segundo a tradição da cultura judaico-cristã somos educados para considerar o corpo com reservas, como algo inferior e de menor importância. Em algumas comunidades cristãs mais radicais, o corpo é a fonte de todos os pecados, algumas ainda acreditam na auto-flagelação. Em casa e na escola nos ensinam a reprimir os movimentos naturais, e nos ordenam quase todo o tempo ficar quietos, quando o movimento é a expressão da sede de conhecer e de viver. Isso inibe a expressão e a comunicação, assim como o aprendizado, e o impulso natural de criar, descobrir e explorar o desconhecido. Não estou fazendo a apologia da bagunça, mas é importante permitir que a criança se expresse, e seja consciente do momento e do lugar onde se encontra. Na sala de aula, as crianças enfileiradas umas atrás das outras são forçadas a ficar numa posição desconfortável por horas, e conseqüentemente começam a sofrer os efeitos dessa negação das expressões naturais do corpo. O resultado disso é má postura, desinteresse pela aula, tédio, irritação e indisciplina. Portanto, começa desde cedo o nosso distanciamento do corpo, das suas necessidades básicas de ação, reação e interação. Na educação do físico nas escolas, com freqüência, o professor (a) exige posturas corporais rígidas e antinaturais; isso modifica a estrutura músculo-esquelética, e também o sistema nervoso e a autopercepção. Essa rigidez física cria rigidez mental e inibe o fluxo da criatividade. Isso influencia nossos pensamentos, valores, conceitos morais e estéticos, e também define padrão de crenças. A educação do físico passa por exercícios de força e flexibilidade como yoga, tai chi, kung fu, a ki do e esportes como a natação. A destreza física deve ser desenvolvida junto com a concentração mental e a criatividade. Para tal, jogos como xadrez e damas são de grande valia. Os jogos coletivos devem priorizar a colaboração e a interdependência. Culturalmente, para nós ocidentais, o corpo é estigmatizado como fruto do pecado original, e carregamos a culpa inconsciente e o medo do castigo. Isso nos impede de conhecê-lo melhor e de lidar com ele adequadamente. Por isso, a sexualidade se reveste de inibições, hipocrisias e outras distorções que explodem numa sociedade extremamente erotizada que banaliza e menospreza a poderosa energia da reprodução da vida.. Conseqüentemente o corpo é visto por muitos, como obstáculo para a autorealização, e a prisão do espírito. Não quero com isso julgar as orientações de cada Tradição, mas sim lembrar que o corpo é a morada da alma. No caso do cristianismo negar o corpo ou diminuir sua importância, se trata de um paradoxo porque Jesus, o avatar do amor, e a Fonte inspiradora do cristianismo, sacraliza o corpo quando ressurge esplendoroso no Monte da Transfiguração. Na verdade, todos os avatares glorificam o corpo físico quando assumem forma humana para nos mostrar que somos divinos. É preciso corrigir a visão vesga que temos com reação ao corpo e curar essa dissociação entre corpo, intelecto e espiritualidade. O corpo físico é um presente, dá origem a ação realizadora e ao corpo astral, ou corpo dos desejos. Esse sim, pode constituir as amarras que nos atam as várias encarnações, porque somos prisioneiros dos desejos não realizados. Portanto, a subtilização do corpo astral, ou emocional, está diretamente ligada ao refinamento da qualidade dos nossos desejos e prazeres. A subtilização do corpo astral, ou dos desejos, é o caminho para a libertação do jugo dos instintos e para a maestria sobre a mente. O corpo dos desejos vai se aprimorando a medida que nos conscientizamos de hábitos e processos mentais, e seus efeitos no corpo físico e nos nossos relacionamentos. Somos compostos de corpos: físico, astral, intelecutal-mental, psíquico e espiritual, que se interpenetram; e embora sejam independentes mantêm entre si uma relação constante. A complexidade do corpo físico oferece o instrumental necessário para o autentico exercício da consciência, e da experiência plena do potencial humano. Portanto, é importante educar conscientizando desde cedo as crianças do valor do próprio corpo e ao mesmo tempo a não identificação com ele. Assim nasce a construção da verdadeira identidade. É preciso que a criança saiba que o corpo é seu veículo de expressão, deve por isso ser cuidado e respeitado. È importante ensinar que o corpo sofre transformações e é perecível, e que nem ele nem a nossa personalidade são o nosso eu verdadeiro. Eles funcionam como servidores do espírito. Aos poucos, pelo exame critico dos pensamentos, auto-observação e auto-analise a criança vai buscar respostas na sua interioridade. Isso é libertador porque estimula o autoconhecimento, ensina a reconhecer a dinâmica mágica dos diferentes níveis de realidade, e dos ciclos naturais do corpo, da mente e da existência.. Implica respeito e gratidão compreender o corpo físico como uma dádiva da natureza a serviço da vida, e de Deus. A consciência do corpo é o primeiro passo para a consciência da Presença do Divino atuante em cada ser vivo na natureza, e desperta a reverência pela vida. A educação quer familiar quer formal deve ensinar que o espírito habita na carne, e por isso o corpo deve ser honrado, respeitado e cuidado como recinto sagrado. O corpo não é um campo vicioso e cheio de armadilhas, nem é a morada do Mal, é a morada de Deus.
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