quinta-feira, 15 de julho de 2010

A Consciência do Corpo

“Como um rio de alma comum, do brâmane ao flâmine romano, do hierofante ao druida, uma espécie de Deus fluido corre nas veias do gênero Humano”
Victor Hugo

O corpo não é apenas a nossa aparência, mas uma expressão material do Ser. O sagrado e o profano se expressam no corpo, como divino paradoxo.Somos um espírito que se tornou matéria, e temos um corpo que serve de veículo para interação com o meio externo, através dos órgãos dos diversos sistemas que compõem nosso organismo. Nosso corpo sofre influencias exteriores, as processa como informações e as interpreta constantemente. Isso acontece sem que nos apercebamos dos constantes processamentos químicos e neuronais que resultam em bem ou mal estar, saúde ou doença. Porém, é possível desenvolver a consciência do corpo e a percepção das suas funções e movimentos interiores. Para a filosofia e medicina orientais existe desde tempos longínquos a compreensão de que espírito, psique e soma (corpo) estão entretecidos numa só malha interdependente. A consciência, ao assumir forma humana, adquire invólucros que são igualmente importantes para atuar, e compartilhar em diferentes níveis e maneiras com todas as formas de vida. Esses invólucros os hindus chamam “koshas”. Panchakoshas, cinco invólucros ou envoltórios: físico, vital, mental, intelectual e psiquico-espiritual. Atualmente, a medicina ocidental se aproxima cada vez mais dessa compreensão integrada do ser humano. As concepções culturais direcionam o uso e a importância subjetiva, e objetiva do nosso corpo físico. As culturas ágrafas dos povos tribais têm na natureza seu livro de sabedoria, e são mais íntimos da Terra, por isso têm uma fluidez maior de movimentos corporais e um refinamento sensório-motor. Para esses povos a percepção dos recursos do corpo é muito importante. É fundamental para que sejam capazes de desempenhar suas tarefas básicas com boa qualidade, flexibilidade e alegria. Para tal entram em sintonia com o ritmo da natureza, e sobrevivem pela habilidade do corpo para se adaptar as intempéries, e caçar, pescar, subir em árvores, nadar, correr e dançar para louvar o sagrado. No Egito antigo os sacerdotes médicos acreditavam que os princípios que regiam o corpo eram os mesmos que regem o universo. O ser humano era visto como um protótipo do universo, e o corpo como o microcosmo. Portanto, nele todas as ciências residiam. O corpo era o Templo do Ser e do Saber, e cada órgão era identificado com determinado “neter”, um aspecto de Deus. Cada “neter”, ou aspecto de Deus, tinha regência sobre os órgãos dos diferentes sistemas que compõem o organismo. Quanto mais saudável o corpo permanecia, tanto mais estava harmonizado com os deuses, a vida e o universo. Os gregos compreendiam o corpo como fonte de prazer e beleza, e esteticamente o físico deveria evidenciar a unificação do soma e da psique, ou seja, do corpo e da alma. No ideal grego-helênico, o corpo pode e deve expressar valores filosóficos do bem e do belo. Mentes e corpos saudáveis era a meta a ser cumprida. Para os budistas e hindus o corpo, é o Templo de Deus e da Transmutação, é o vaso alquímico onde todas as forças do universo estão reunidas, e devem ser canalizadas e transformadas de modo a criar uma ordem de integridade elevando assim a energia das tendências naturais, e a radiância do espírito. Para os chineses a saúde é equilíbrio de energias e a sintonia fina entre o micro e o macro cosmo, o homem e o universo. Desde crianças, no ocidente, segundo a tradição da cultura judaico-cristã somos educados para considerar o corpo com reservas, como algo inferior e de menor importância. Em algumas comunidades cristãs mais radicais, o corpo é a fonte de todos os pecados, algumas ainda acreditam na auto-flagelação. Em casa e na escola nos ensinam a reprimir os movimentos naturais, e nos ordenam quase todo o tempo ficar quietos, quando o movimento é a expressão da sede de conhecer e de viver. Isso inibe a expressão e a comunicação, assim como o aprendizado, e o impulso natural de criar, descobrir e explorar o desconhecido. Não estou fazendo a apologia da bagunça, mas é importante permitir que a criança se expresse, e seja consciente do momento e do lugar onde se encontra. Na sala de aula, as crianças enfileiradas umas atrás das outras são forçadas a ficar numa posição desconfortável por horas, e conseqüentemente começam a sofrer os efeitos dessa negação das expressões naturais do corpo. O resultado disso é má postura, desinteresse pela aula, tédio, irritação e indisciplina. Portanto, começa desde cedo o nosso distanciamento do corpo, das suas necessidades básicas de ação, reação e interação. Na educação do físico nas escolas, com freqüência, o professor (a) exige posturas corporais rígidas e antinaturais; isso modifica a estrutura músculo-esquelética, e também o sistema nervoso e a autopercepção. Essa rigidez física cria rigidez mental e inibe o fluxo da criatividade. Isso influencia nossos pensamentos, valores, conceitos morais e estéticos, e também define padrão de crenças. A educação do físico passa por exercícios de força e flexibilidade como yoga, tai chi, kung fu, a ki do e esportes como a natação. A destreza física deve ser desenvolvida junto com a concentração mental e a criatividade. Para tal, jogos como xadrez e damas são de grande valia. Os jogos coletivos devem priorizar a colaboração e a interdependência. Culturalmente, para nós ocidentais, o corpo é estigmatizado como fruto do pecado original, e carregamos a culpa inconsciente e o medo do castigo. Isso nos impede de conhecê-lo melhor e de lidar com ele adequadamente. Por isso, a sexualidade se reveste de inibições, hipocrisias e outras distorções que explodem numa sociedade extremamente erotizada que banaliza e menospreza a poderosa energia da reprodução da vida.. Conseqüentemente o corpo é visto por muitos, como obstáculo para a autorealização, e a prisão do espírito. Não quero com isso julgar as orientações de cada Tradição, mas sim lembrar que o corpo é a morada da alma. No caso do cristianismo negar o corpo ou diminuir sua importância, se trata de um paradoxo porque Jesus, o avatar do amor, e a Fonte inspiradora do cristianismo, sacraliza o corpo quando ressurge esplendoroso no Monte da Transfiguração. Na verdade, todos os avatares glorificam o corpo físico quando assumem forma humana para nos mostrar que somos divinos. É preciso corrigir a visão vesga que temos com reação ao corpo e curar essa dissociação entre corpo, intelecto e espiritualidade. O corpo físico é um presente, dá origem a ação realizadora e ao corpo astral, ou corpo dos desejos. Esse sim, pode constituir as amarras que nos atam as várias encarnações, porque somos prisioneiros dos desejos não realizados. Portanto, a subtilização do corpo astral, ou emocional, está diretamente ligada ao refinamento da qualidade dos nossos desejos e prazeres. A subtilização do corpo astral, ou dos desejos, é o caminho para a libertação do jugo dos instintos e para a maestria sobre a mente. O corpo dos desejos vai se aprimorando a medida que nos conscientizamos de hábitos e processos mentais, e seus efeitos no corpo físico e nos nossos relacionamentos. Somos compostos de corpos: físico, astral, intelecutal-mental, psíquico e espiritual, que se interpenetram; e embora sejam independentes mantêm entre si uma relação constante. A complexidade do corpo físico oferece o instrumental necessário para o autentico exercício da consciência, e da experiência plena do potencial humano. Portanto, é importante educar conscientizando desde cedo as crianças do valor do próprio corpo e ao mesmo tempo a não identificação com ele. Assim nasce a construção da verdadeira identidade. É preciso que a criança saiba que o corpo é seu veículo de expressão, deve por isso ser cuidado e respeitado. È importante ensinar que o corpo sofre transformações e é perecível, e que nem ele nem a nossa personalidade são o nosso eu verdadeiro. Eles funcionam como servidores do espírito. Aos poucos, pelo exame critico dos pensamentos, auto-observação e auto-analise a criança vai buscar respostas na sua interioridade. Isso é libertador porque estimula o autoconhecimento, ensina a reconhecer a dinâmica mágica dos diferentes níveis de realidade, e dos ciclos naturais do corpo, da mente e da existência.. Implica respeito e gratidão compreender o corpo físico como uma dádiva da natureza a serviço da vida, e de Deus. A consciência do corpo é o primeiro passo para a consciência da Presença do Divino atuante em cada ser vivo na natureza, e desperta a reverência pela vida. A educação quer familiar quer formal deve ensinar que o espírito habita na carne, e por isso o corpo deve ser honrado, respeitado e cuidado como recinto sagrado. O corpo não é um campo vicioso e cheio de armadilhas, nem é a morada do Mal, é a morada de Deus.

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